Já não é de agora que entre os comunistas aparenta ser supérfluo levantar a bandeira da abolição de uma das instituições que mais infatigavelmente sustenta a existência do estado capitalista - as forças de repressão do estado, nomeadamente a PSP e a GNR. A polícia restaura a “paz e a ordem” sempre que um movimento de massas ou proletário ameaça a exploração dos capitalistas ou o seu estado.
Batalhar por uma das bandeiras mais essenciais e fundamentais do marxismo revolucionário é o que separa o trigo do joio, os comunistas revolucionários dos oportunistas. Os últimos chegam a ser, em Portugal, os defensores mais ferrenhos desta instituição, defendendo a continuação da sua existência através de reformas e pequenas modificações.
O Partido Comunista Português, representante do reformismo em Portugal, evidentemente considera que existe lugar para a polícia no seu projeto Abrilista de democracia avançada. Tomando um exemplo recente, em Outubro de 2023, o PCP apresentou projetos de lei para a melhoria das condições de “trabalho” dos elementos das “forças de segurança”. Foram chumbados com votos contra do PS/PSD; o último abstendo-se em alguns juntamente com a IL; e a aprovação de quatro outros partidos - BE, Livre, Pan e Chega¹.
Este episódio relata-nos várias coisas: o PS e PSD votaram contra, não por qualquer amor a quem vive debaixo da sua bota, é claro, mas porque o salário da polícia, por não produzir valor, tem de vir do que seria, de outra forma, mais-valia apropriada pelo capital; a força mais reacionária em Portugal e as restantes forças parlamentaristas (BE, Livre e PAN) veem-se alinhados no reforço da repressão contra os explorados e oprimidos; e que o PCP encontra-se focado mais na suposta injustiça do fator de sustentabilidade (penalização por reforma antecipada) devido ao trabalho árduo e desgastante originário da sua profissão, ou seja, a manutenção e defesa do regime burguês, em vez de estar focado nas injustiças cometidas às populações marginalizadas e à classe trabalhadora por parte da polícia. Será que o PCP não se questiona porque a extrema direita se encontra a lutar ao seu lado da barricada nesta questão?
A posição do PCP quanto às forças de repressão é a mesma que tem perante o estado democrático-burguês em geral: nenhuma oposição à instituição como um todo, fundamentada por uma análise revolucionária; mas apenas uns meros apontamentos quanto à “falta de democracia” que poderiam ser resolvidos ao inserir algumas reformas, pregando a unidade entre proletários e polícias.
O PCP, por um lado, glorifica a função da PSP e da GNR, elogiando a estrutura hierárquica das mesmas, os múltiplos controlos a que estão submetidos (Inspeção Geral da Administração Interna e a Procuradoria-Geral da República), a formação adequada que apresentam, para as mais várias “delicadas funções” que a polícia exerce, e definindo-a como uma força no que zela pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O PCP defende então um policiamento de proximidade (sempre é melhor ser espancado ou alvejado pelo polícia do bairro do que um polícia desconhecido) e demonstra uma visão que romantiza, de forma ingénua, o papel das forças policiais como forças que simplesmente combatem e previnem o crime e mantêm a “tranquilidade pública”² , sem nunca, como já é costume, perguntar qual o carácter de classe destas instituições.
Porém, para o PCP, nem tudo está perfeito nas forças policiais, mas o conteúdo das suas críticas é inesperado para um partido que se denomina de comunista. O PCP está insatisfeito com a existência de 7 agências de polícia diferentes (PSP, GNR, PJ, ASAE, Polícia Marítima, Guarda Prisional e SEF) argumentando que esta é uma situação geradora de desperdícios, injustiças e incoerências³, ou seja, o problema não é a existência em si de instituições de repressão e manutenção do Estado burguês.
Com isto, o PCP afasta-se totalmente dos princípios comunistas e segue um rumo totalmente diferente, propondo agregar estas forças do Estado numa única polícia nacional de modo a, citando a deputada Alma Rivera, em 2022: “rentabilizar os recursos que são disponibilizados para a segurança interna e pô-los ao serviço da melhoria das condições operacionais e de trabalho do efetivo. Ultrapassar a sobreposição e falta de coordenação.”. A citação é reminiscente de um discurso liberal, de rentabilizar os recursos disponíveis e melhorar a coordenação dentro das forças policiais, de forma a tornar o aparelho repressivo do Estado mais eficiente e económico. Isto é suportado, também pelas palavras do PCP, com os seguinte argumentos a favor da polícia nacional: “uma apreciável dinâmica de rejuvenescimento do efetivo policial ", uma "redução de custos bastante significativa", "um reforço substancial de 15% a 20 % na componente operacional" e a "extinção de sobreposições de competências e replicações funcionais potencialmente geradoras de conflitualidade"⁴. Tudo bem com a existência da polícia, desde que esta seja mais barata e eficiente.
Esta opinião, dentro da polícia, é longe de ser controversa, sendo que os “sindicatos” da polícia, representados por criaturas como o César Nogueira, presidente da Associação de Profissionais da Guarda e Paulo Jorge Santos, presidente da Associação Sindical de Profissionais da Polícia (ASPP-PSP), ressoam efetivamente o mesmo género de opiniões:
"Esta medida poderia trazer várias vantagens, logo à partida, acabando com sobreposições no terreno, que tantos constrangimentos criam. Eliminaria também duplicações de serviços administrativos, financeiros e recursos humanos, permitindo que muitos profissionais pudessem ser colocados nas unidades operacionais. Já para não falar nas redundâncias de edifícios, unidades especiais, materiais, equipamentos. As verbas que se poderiam poupar chegavam certamente para melhorar os salários e as condições de trabalho de muitos profissionais"⁵, afirma César Nogueira;
"Ao nível do efetivo, da missão e de uma perspetiva de otimização de recursos parece-nos a proposta do PCP interessante e pertinente"⁶, sublinha Paulo Jorge Santos.
Chegando aos dias de hoje, em 2024, a defesa incansável da polícia por parte do PCP não mudou de todo. O PCP ainda defende a compensação à polícia pela repressão de protestos pacíficos de estudantes⁷, detenção de participantes de manifestações por se oporem ao fascismo⁸, a realização de provocações dentro de manifestações e o espancamento⁹ e chacina de proletários racializados: “A atribuição de um subsídio que compensasse os profissionais das forças e serviços de segurança pelo risco, penosidade e disponibilidade permanente inerentes à natureza das suas funções era uma reivindicação insistente dos próprios cuja justeza era quase unanimemente reconhecida pelas forças políticas.”¹⁰;
Orgulha-se e vangloria-se por ser o defensor por excelência dos carrascos que operam a repressão sobre a classe trabalhadora sempre que necessário: “Desde há muitos anos que o PCP tem vindo a defender consistentemente a dignificação socioprofissional dos profissionais das forças e serviços de segurança. Não apenas nos discursos, mas com a proposta de medidas concretas de reforço dos seus direitos, no plano remuneratório e de carreiras, mas também no domínio dos direitos sindicais, da segurança e saúde no trabalho, das instalações e equipamentos, da admissão de efetivos, de criação de um estatuto da condição policial.”¹¹.
Além disto, o PCP, ao analisar a função e atuação da polícia, deita ao caixote do lixo qualquer forma de análise de classe. Ao aprovar o estatuto da condição policial, que afirma que a função da mesma é a “defesa da legalidade democrática”, “...garantir a ordem jurídico-constitucional, através da segurança de pessoas e bens e da prevenção de crimes.”, afirmando que esta está sob a “...subordinação ao interesse público” e que se caracteriza “Pela defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos fundamentais dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei;”¹².
Ou seja, o PCP não viu nada que o impedisse, por princípio, de aprovar este estatuto, que rejeita qualquer análise de classe, ao incluir termos como “interesse público”, que é totalmente nulo de conteúdo de classe e define a sociedade como algo amorfo e uniforme, e ignora as contradições de cada classe que compõe o “público”, sendo que o interesse da burguesia é a continuação do castigo e exploração do proletariado. Além disto, evidencia a total incapacidade do PCP de se descolar do democratismo e do reformismo abrilista, ao concordar com a função de defesa da legalidade democrática, por outras palavras, a defesa da democracia burguesa, a sua constituição e a aplicação das leis que perpetuam a democracia burguesa.
Sem o Apoio da Polícia, Como Será Feita a Revolução?
Vejamos o que Lénine, em meados de 1917, tinha a dizer sobre esta questão, e as conclusões que se podem retirar quanto ao projeto político do PCP a partir dos textos dele:
“Necessitamos de um Estado, mas não de um como aquele de que a burguesia necessita, com organismos do poder separados do povo e opostos ao povo sob a forma da polícia, do exército, da burocracia (funcionários). Todas as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram esta máquina de Estado, apenas a transferiram das mãos de um partido para as mãos de outro partido.”¹³ Lénine evidencia que o objetivo do PCP de melhorar e aperfeiçoar a maquinaria de estado, inclusive a polícia, representado pelo seu projeto político da “Democracia Avançada”, é de realizar uma revolução burguesa no contexto da própria democracia burguesa, liderada pelo povo e as “camadas antimonopolistas” (ou seja, a pequena e grande burguesia nacionais, com o proletariado a reboque). Não deve ser surpreendente para ninguém que no atual período histórico do capitalismo imperialista, que isto é tão absurdo quanto é impossível.
Veremos a solução que Lenin e Marx propõem para a dissolução definitiva do governo burguês, através do exemplo da comuna de Paris de 1871 e da revolução Russa de 1905:
“Mas o proletariado, se quiser defender as conquistas da revolução atual e avançar, conquistar a paz, o pão e a liberdade, tem de «demolir», para usar as palavras de Marx, esta máquina de Estado «já pronta» e de substituí-la por uma nova, fundindo a polícia, o exército e a burocracia com todo o povo armado. Seguindo a via apontada pela experiência da Comuna de Paris de 1871 e da revolução russa de 1905, o proletariado deve organizar e armar todos os sectores mais pobres e explorados da população, para que tomem eles próprios diretamente nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, constituam eles próprios as instituições deste poder.”
“De que milícia precisamos nós, o proletariado, todos os trabalhadores? De uma milícia realmente popular, isto é, em primeiro lugar, constituída por toda a população, por todos os cidadãos adultos de ambos os sexos, e, em segundo lugar, de uma milícia que combine em si a função de exército popular com as funções de polícia, com as funções de órgão principal e fundamental da ordem pública e da administração estatal.”¹⁴
Ou seja, nenhuma força policial burguesa, independentemente da quantidade de “controlos democráticos” a que esteja submetida, irá desempenhar a função de uma milícia proletária, ou seja, não existe necessidade de tentar atrair os constituintes de um órgão burguês, composto por traidores de classe e carniceiros, para o nosso lado da barricada.
Falando em “controlos democráticos”, eis a recomendação de Lénine, para uma força realmente proletária e democrática: “Criar uma milícia realmente de todo o povo, geral, dirigida pelo proletariado! - tal é a tarefa do dia, tal é a palavra de ordem do momento, que corresponde de igual modo tanto aos interesses corretamente entendidos da luta de classes ulterior, do movimento revolucionário ulterior, como ao instinto democrático de qualquer operário, de qualquer camponês, de qualquer trabalhador e explorado, que não pode deixar de odiar a polícia, os guardas, os polícias rurais, o comando dos latifundiários e polícias sobre homens armados que obtém poder sobre o povo.”¹⁵
Fica assim mais que claro que as conceções e análises de Marx e Lénine são completamente opostas às posições do dito partido “marxista-leninista”. Apenas o proletariado pode ser capaz de lutar pela sua própria emancipação, nunca se fazendo depender de forças que defendem interesses opostos aos seus e que ainda por cima lutam ativamente e de forma repressiva contra essa libertação.
De que Lado Vais Estar, PCP?
O PCP confrontado com os protestos das populações dos bairros marginalizados, em resposta à execução de Odair Moniz por parte da PSP, imediatamente coloca-se contra as “violências e instigações”: “As expressões de violência, aproveitamento e instigação provocatória ocorridas são condenáveis.”. O PCP, no entanto, não vê a ironia ao declarar, no mesmo documento: “Face a acções de violência, as medidas necessárias para restabelecer a segurança e tranquilidade das populações têm de ser proporcionais.”; e que é necessário “...uma preparação adequada dos agentes das forças de segurança.”¹⁶.
Sobre este exemplo claro de justa revolta proletária, o PCP limita-se a juntar ao coro das restantes forças burguesas, e começa imediatamente a rogar que estes protestos sejam reprimidos, ou seja, que este caso seja varrido para debaixo do tapete, e que se investigue o que se sucedeu e que se esqueça sobre todo o assunto.
O PCP, ao consistentemente tomar este tipo de posições, reforça a imagem do que sempre foi, um partido colado ao reformismo e à manutenção da ordem burguesa, o business as usual e o maior defensor dos órgãos burgueses e do status quo existente em Portugal. O PCP, após uma longa história de resistência e organização contra a polícia burguesa do regime fascista, na qual muitos dos seus militantes foram perseguidos, presos, torturados e assassinados, torna-se um dos maiores defensores da polícia burguesa.
Gostaríamos de concluir com uma pergunta simples: Quando o proletariado se erguer de forma organizada contra a repressão policial, de que lado da barricada irá o PCP estar? No lado do proletariado, ou ao lado das forças policiais enquanto condena todas as formas de violência?
Referências
1 - Observador
2 - João Amaral, Intervenção na AR
4 - idem
5 - idem
6 - idem
7 - Revista Sábado
8 - Semanário Sol
9 - Expresso
10 - António Filipe, Intervenção na AR
11 - idem
12 - PCP, Exposição de motivos
13 - Cartas de Longe, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1986, t3, pp 78-119
14 - idem
15 - idem