Introdução
Sob uma sociedade agitada pela revolução proletária de 1917, é fundado em 6 de Março de 1921 o Partido Comunista Português. Partido de enorme importância nas lutas da classe trabalhadora em Portugal, tanto para o bem como para o mal.
É para nós de uma enorme importância analisar os principais acontecimentos históricos do PCP, de forma a que possamos entender a sua postura nos dias de hoje, dias estes de grandes convulsões sociais, riscos de um maior alastramento de guerras imperialistas, desastres climáticos a acontecer à frente dos nossos olhos.
É certo que são mais de 100 anos de uma rica e complexa história. Uma realidade portuguesa que vem a mergulhar no fascismo, obriga o partido a entrar, durante anos, na clandestinidade. Estes anos, são seguidos pela mais relevante revolução em Portugal e, por fim, pela consolidação de uma ideologia que se vê inofensiva para a classe dominante.
Rumo à derrota
Consideramos essencial começar por analisar as posições do PCP a partir do VI Congresso, em 1965. É no seu decorrer que, escrito por Álvaro Cunhal, o respectivo relatório - “Rumo à Vitória”, viria a traçar a linha do partido para a revolução que se desencadearia quase 10 anos depois. Em praticamente 300 páginas, o autor caracteriza a sociedade portuguesa, critica o Estado fascista e dita os aspetos fundamentais a serem concretizados na “revolução democrática”.
O PCP não queria, portanto, uma revolução proletária, mas sim uma revolução que derrubasse o aparelho do Estado fascista. Aliás, a maioria das obras e artigos citados em “Rumo à Vitória” eram escritos de Lénin sobre a revolução de 1905. A maioria das ditas “aprendizagens importantíssimas”, referentes tanto à revolução de 1917 como a outras revoluções pelo Mundo, foram praticamente ignoradas e postas de lado. O grande objetivo para o partido era o derrubamento do aparelho de Estado fascista e a consolidação da democracia. Cunhal evitava mencionar que se tratava de uma democracia burguesa, ou em geral de a caracterizar concretamente. Como dizia Lénin, aquando de uma resposta a Kautsky: “É natural para um liberal falar de «democracia» em geral. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: «para que classe?»”¹. Certamente não era para a proletária.
A revolução seria alavancada pelas “forças antimonopolistas e antifascistas”, i. e., “o proletariado e a burguesia no seu conjunto, (...) a burguesia industrial e o campesinato, (...) a pequena e média burguesia.”² Desta forma, e sem uma força organizada e independente do proletariado, seria inevitável que se iria instalar um regime burguês, onde mais tarde ou mais cedo a burguesia iria instalar a sua dominância sob a classe trabalhadora, e por muito defeituosa que seja a posição de uma frente “antifascista” para derrubar o Estado Novo, o mínimo que se poderia pedir do Partido Comunista era a crítica ao Estado burguês que se iria formar.
Isso praticamente nunca aconteceu, pelo menos não de uma forma ativa e constante. O máximo que ocorreu foi uma observação de que as classes que compunham o movimento antifascista tinham contradições entre si. Mas esta postura conciliadora tornar-se-ia mais clara no eclodir da revolução de Abril e mais tarde no processo revolucionário.
Ao chegar a Portugal em 1974, e também depois no discurso no 1º de Maio, Álvaro Cunhal deixou bem claro que os objetivos imediatos eram os da consolidação da revolução, da aliança do povo com as forças armadas e da democratização do sistema. A conciliação com setores da burguesia torna-se mais claro (“Unidade dos trabalhadores. Unidade do povo. Unidade de comunistas, socialistas, católicos, liberais (...) unidade de todos sem excepção…”³) e foi ainda mais longe pedindo ao povo que se organize “no movimento democrático e nos partidos políticos”⁴! Para além das mãos dadas com camadas hostis ao movimento comunista, Cunhal apela à organização nessas mesmas forças políticas.
Juntamente com as forças armadas, a tal aliança democrática consegue, sem dúvida, alcançar conquistas favoráveis a toda a classe trabalhadora. Porém, não foi um período revolucionário onde houvesse estabilidade, bem pelo contrário (como era de se esperar). Entre uma esquerda que pedia a conquista do poder pelo proletariado e uma direita que queria acabar com a revolução, o PCP encontrava-se no meio, chamando de oportunistas e aventureiros a quem o criticava pela esquerda e tentando lutar contra um contra golpe reacionário.
Entretanto, no mês de Outubro, é realizado o VII Congresso do partido. É a partir de aqui que a expressão “ditadura do proletariado”, que Lénin considera a “pedra de toque”⁵ do marxismo, é completamente apagada do Programa do partido. Para ele, a expressão poderia induzir a que a população pensasse “que o PCP não reconheceria as liberdades e direitos de um regime político democrático e teria como objectivo a instauração em Portugal de um regime de violenta repressão”⁶. Mesmo assim, sem falar o nome de um dos conceitos mais importantes para a luta do proletariado, o PCP diz que na prática ainda defende a ditadura do proletariado. Mas não é apenas a nomenclatura que desaparece do programa. Com ela, desaparece também qualquer hipótese de que a “revolução socialista” irá decorrer de modo violento. Onde antes se lia que o partido não ia “deixar de considerar o recurso a uma via não-pacífica…”⁷ passa-se a ler “a realização da revolução democrática e nacional criará condições favoráveis para a passagem pacífica ao socialismo”⁸. Por isso agora, de repente, é possível que o proletariado assente o seu domínio com o poder das palavras e dos papéis com palavras escritas. Certamente a burguesia irá aceitar sem contestação, estendendo um tapete vermelho e apontando o caminho para o trono.
O pós-revolução
Mas para surpresa de todos, o contra golpe que ocorreu no final de 1975 é perpetuado quase sem resistência, e põe fim ao processo revolucionário. Foi um acontecimento muito complexo, mesmo a ação do PCP nele, mas que não nos interessa muito analisar, até porque se uma revolução que não mantinha um poder proletário mas alcançava reformas favoráveis a ela se mantivesse viva e estável então iria contrariar toda a teoria marxista leninista.
Uma coisa foi certa, a forma de Estado fascista tinha sido praticamente destruída, e um retorno imediato à censura e perseguição política seria impossível, visto que de seguida a república democrática burguesa se tinha consolidado.
Foram muitas as conquistas e os progressos alcançados no PREC, o PCP apelidou-as de “conquistas da revolução”. Uma delas, e de extrema importância de análise e crítica, foi a Constituição da República.
Redigida por uma assembleia eleita por sufrágio universal, contou com o contributo de forças políticas com polaridades bem diversas. O resultado foi uma Constituição complexa, que descrevia a República Portuguesa como “empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes”⁹. Defendia que a lei poderia permitir que “expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas não dêem lugar a qualquer indemnização”¹⁰, e também que “A todos é garantido o direito à propriedade privada”¹¹. Ou seja, a constituição tinha de facto um carácter burguês e social-democrata. Alguns dos artigos são entraves para a burguesia conseguir impor o seu domínio, mas nada impedia que tais artigos fossem modificados. Bastava para isso vontade de pelo menos três quartos da Assembleia da República. Obviamente que tais forças burguesas não poderiam imediatamente reverter alguns avanços, com o risco de perder apoio popular.
Mas gradualmente a classe dominante molda a Constituição ao seu gosto, com o auxílio de sete revisões constitucionais, em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005. Um aspeto manteve-se, o preâmbulo continua a mencionar o abrir de um caminho para uma sociedade socialista. É um pedaço de texto que na prática não tem influência nenhuma. Poderá ser essa a razão que nenhum partido político com poder tenha tido o esforço de a remover.
Voltando atrás no nosso artigo, é esta a Constituição que o PCP considera uma conquista a se defender. Independentemente das revisões (mesmo o PCP tendo lutado contra elas), é hoje uma das grandes bandeiras do partido. Aliás, um facto muito irónico, nos dias de hoje o “partido da classe operária e de todos os trabalhadores” é o maior defensor da Constituição burguesa. Facto irónico que apenas demonstra o caráter revisionista e afastado de uma luta de classes independente que o partido tem. É a maior prova que existe que o PCP não consegue “defender o proletariado” sem se agarrar a estruturas institucionais.
E é desta forma que o PCP defende hoje a revolução socialista. Associando completamente a revolução de Abril à conquista do poder pelo proletariado, de uma forma pacífica. Por isso, para alcançar esse poder, bastaria ressuscitar a revolução de Abril, utilizando a Constituição como desfibrilador. Esta postura ignora completamente o verdadeiro carácter do 25 de Abril, revolução que colocou fim ao Estado Novo e colocou no seu lugar uma democracia burguesa parlamentarista. Esta postura é também fruto de uma enorme ausência autocrítica em relação a toda a ação do PCP no processo revolucionário, dando a entender a toda a estrutura do partido que não foram cometidos nem erros ideológicos nem erros práticos.
Entra então uma forma nova e completamente inovadora de analisar a sociedade e as estruturas e relações de poder. A luta de classes é praticamente abandonada e entra a visão de que um governo ou realiza “políticas de direita” ou “políticas de esquerda”. Assim sendo, o partido tem uma nova luta: “as liberdades não se defendem com uma política de direita, mas com uma politica de esquerda”¹².
Toda esta tese de “política de direita” contra “política de esquerda” é desenvolvida ao longo do tempo, tendo o seu marco mais importante no XII Congresso em 1988, quando é aprovado o Programa onde a política da “Democracia Avançada” é exposta. É esta política que passa a ser defendida em todas as campanhas do PCP. Esta basicamente dita as políticas a adotar para o país caso o partido ganhe as eleições.
A teoria social-democrata da “Democracia Avançada” recebe consolidações teóricas no XIX Congresso em 2012. Para opor o termo “política de direita”, o PCP inventa um novo conceito, a “Alternativa Patriótica e de Esquerda”, descrito pelo próprio como uma política que irá romper com uma data de “políticas de direita”, ou seja, na mesma um conjunto de ideias de governação. Algo que não passa de uma refinação da “Democracia Avançada”, e em termos de forma não muda nada.
E é nisto que se encontra o Partido Comunista Português, abandonando totalmente a luta de classes, abraça um caminho totalmente social-democrata, que visa alcançar o socialismo pela via democrática, que abandona tanto na nomenclatura como na prática a ditadura do proletariado, que olha para o Estado burguês como um governo que realiza “políticas de direita”, e é isto. Para combater todas as opressões basta implantar “políticas de esquerda” (mas que sejam patrióticas, por favor).
Aqui caímos mais num pecado revisionista do PCP. Porque de acordo com a sua teoria então deveremos lutar pelas “políticas de esquerda”. Eis que é isso que acontece na chamada “geringonça”, entre 2015 e 2019. Neste acordo de governação com a burguesia, são revertidos alguns recuos e implementados alguns avanços para os trabalhadores. Depois desse período, o partido começa a defender as conquistas alcançadas nesse período, como por exemplo os manuais escolares gratuitos¹³ ou o passe geral gratuito, medidas estas completamente limitadas para aquilo que é a verdadeira opressão que o proletariado sofre diariamente às mãos do sistema capitalista.
Este pecado tem um peso maior, porque para além do sistema de opressão burguês se imunizar de críticas (linha do partido contra a “política de direita”), este passa a ser elogiado, e o PCP começa a propagandear que é possível alcançar reformas positivas para a classe trabalhadora, enquanto toda a dinâmica de exploração capitalista permanece intacta. O resultado disto, entre outros, é começar a haver cada vez menos distinções entre o PCP e os restantes partidos mais à esquerda do PS.
Conclusão
Um partido que se diz comunista, marxista e leninista tem que lutar pelos interesses da classe trabalhadora. Tem que lutar pela conquista do poder proletário, através da ditadura do proletariado, alcançada pela organização e consciencialização dos trabalhadores, que irá travar uma luta independente, dependendo apenas de si, sem alianças com a burguesia e demais opressores.
Nos dias que correm, o PCP assinala a sua luta pelo Socialismo, a partir da via democrática, como consta nos primeiros parágrafos da Constituição. A despeito de nos termos enganado no decurso deste artigo, o referido [o Socialismo], não terá sido removido da Constituição por não possuir uma influência prática, mas por conseguir que o partido ativo, mais antigo do país, se envolva numa luta que é, paradoxalmente, inofensiva para a classe burguesa.
Fontes
1 Lénin, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, Cap. 1
2 Cunhal, Rumo à Vitória, pp. 145
3 Cunhal, Discurso no 1º de Maio de 1974
4 idem
5 Lénin, O Estado e a Revolução, Cap. 1
6 Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, pp.257
7 Programa do PCP (até ao VII Congresso), Cap. III
8 Programa do PCP (aprovado no VII Congresso), Cap. III
9 Constituição da República Portuguesa de 1976, Art. 1º
10 idem, Art. 82º
11 idem, Art. 62º
12 Cunhal, Discurso no Comício do PCP de 7/12/1975
13 Grupo Parlamentar do PCP, Proposta de Lei n.º 12/XIII/1.ª