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A transfobia sistémica do PCP e JCP

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Este artigo vem denunciar casos de transfobia por parte de membros do PCP/JCP. Muitos deles quadros com forte peso nessas organizações, tendo já desempenhado papeis nas direções regionais e comité central, e também candidaturas aos vários órgãos do estado.

Alguns destes casos são novidade, devido à sua natureza interna, outros são facilmente reconhecíveis pelas atuações transfóbicas destes membros em redes sociais e no Manifesto74, não associadas oficialmente ao partido - facto usado pelas instâncias partidárias enquanto desculpa para não tomarem ações sancionatórias.

Este problema não é, de todo, novidade. Aliás, tem vindo a ser denunciado tanto pública como internamente e em várias instâncias tendo já despoletado várias outras denúncias e discussões acerca destas e outras opressões recorrentes no PCP.

Ademais, estas denúncias resultaram, nos melhores casos, em abafamentos e silenciamentos e, nos piores deles, em expulsões e afastamentos mais ou menos dissimulados.

Por esta situação se ter vindo a arrastar há vários anos sem as instâncias partidárias terem demonstrado qualquer interesse em resolvê-la - pior ainda, são muitas vezes agentes do silenciamento e da perpetuação - a crítica pública e consequente torna-se imperativa e essencial para desmascarar a reação e o partido que os acolhe.

O Manifesto 74 é um claro exemplo de como o PCP/JCP não toma qualquer medida contra comportamentos transfóbicos e queerfóbicos feitos pelos seus membros. Desculpa-se ao dizer que o Manifesto74 não é um organismo seu, apesar de ser criado e sustentado pelos seus membros que, para além de escreverem artigos transfóbicos, ainda fazem abertamente comentários transfóbicos noutros espaços, como redes sociais.

É importante também ressaltar que há uns meses atrás surgiu uma nova organização unitária - a Frente Feminista Revolucionária - que logo após poucos minutos de surgir, já tinha uma série de quadros e outros militantes do PCP a seguir as suas contas, inclusive o Miguel Tiago. Esta organização é assumidamente feminista com viés bioessencialista, inclusive tendo pontos como “LGB History” nos seus documentos, removendo completamente as pessoas trans, e tendo nos seus valores nucleares pontos que excluem completamente mulheres trans da luta feminista, representando-as como “homens à nascença”, dizendo ainda explicitamente que são “críticas ao transgenerismo” e da “ideologia de género”.

Esta violência não é, de todo, pontual. É recorrente, sistemática, e nela participam ativamente militantes como António Santos, Joana Tomé (também dirigente do MDM), Milene Vale, Miguel Tiago, entre outros, os quais já afirmaram, publicamente:

"Em última análise, [...] um banqueiro sueco podia identificar-se como um aborígene australiano" - António Santos¹

Joana Tomé, militante do PCP e dirigente do MDM, reduz o movimento LGBT a "liberal" e “identitário”, negando a luta das pessoas queer como revolucionária e negando até a interseccionalidade da opressão com base na orientação sexual e da identidade de género.²

“Ya feminismo é eu crescer o cabelo, pintar as unhas, pintar a cara, pôr umas mamas e ir prostituir-me e usar a tua casa de banho.”³ - Miguel Tiago

"Hoje é reacionário dizer que apenas as mulheres menstruam. Hoje é conservador dizer que só as mulheres lactam, ou que só elas engravidam. É impensável afirmar que só as mulheres têm útero. No fundo, é ofensivo dizer “mulher”, porque hoje, a biologia – ciência que está cá bem firme há séculos e que nos ensina uma data de coisas úteis, ao contrário do Twitter – ofende" - Milene Vale⁴

Como já dissemos, estas denúncias não são novas, e vimos articulá-las aqui especificamente porque foram alvo de silenciamento - esmagadas pelo aparelho burocrático do PCP/JCP. Temos de nos perguntar, camaradas: Como pode um partido que se coloca, sistematicamente, do lado dos opressores e contra os oprimidos, lutar por uma sociedade emancipada?

Porque aqui não falamos apenas do apagamento de uma linha política que se opõe à linha partidária, mas de pessoas queer que, quando confrontadas com esta violência, são impedidas de travar a sua luta através da intimidação:

«Em Lisboa, assistimos diretamente ao caso de uma pessoa trans, que havia saído da organização em dezembro passado após a nomeação eleitoral de Miguel Tiago, a ser considerada uma “presença indesejada” no convívio aberto do 25 de abril, no CT Vitória. Enquanto jogava às cartas, depois de ter sido simpaticamente cumprimentada por vários dos seus antigos camaradas, foi isolada e abordada por quatro dirigentes. Após esta abordagem, ficou visivelmente perturbada e contou-nos que um dos dirigentes havia ameaçado chamar a polícia. Ao longo da sua militância, foi em diversos momentos silenciada e excluída por altos quadros, bem como sofreu abusos por parte do Apoio na Festa do Avante por usar as casas de banho do seu género. As tentativas de outros militantes, desde coletivos de base até à Direção Nacional, de denunciarem esta situação foram continuamente ignoradas e colocadas de lado. Quando denunciamos o caso acima descrito, mentiram-nos descaradamente, disseram que as razões da sua saída haviam sido “meramente pessoais” e que “a ex-camarada atacava o Partido nas redes sociais”, razão para a tentativa de expulsão do convívio.

A saída desta militante da organização nem sequer foi discutida nas reuniões da célula onde mantinha atividade. Quando procuramos esclarecimentos sobre o que tinha sido discutido nos órgãos superiores, foi-nos dito que estávamos “a violar os Princípios Orgânicos”, ao querer saber de “assuntos de quadros”. Militantes desse mesmo coletivo de base descreveram, por parte da responsável do coletivo, repetidas atitudes desagradáveis em relação a esta ex-camarada, incluindo ter ignorado, na função de presidente da AE, uma denúncia da transfobia de uma professora, e ter proposto mentir para a excluir das atividades da AE. No ENDA, a mesma AE absteve-se numa moção sobre a inclusão nas universidades, a importância dos pronomes e das casas de banho neutras. Na sua declaração de voto, justificava que estas medidas não tinham importância face à propina e à falta de democracia nas universidades.»⁵

Para além da atividade interna, quadros da JCP continuamente reduzem o dia da visibilidade trans à “apologia a que gente trans trabalhe no mercado sexual” - prostituição de rua, por meios digitais ou outros; sem nunca procurar uma análise crítica desta tendencia. A ideologia burguesa e transfóbica encontra-se tão entranhada no aparelho partidário, que nem tão pouco são capazes de aplicar a análise já mais centenária, deixada por Marx e Engels, sobre a génese da prostituição; e assim vemos claramente como a transfobia e a misoginia caminham de mão em mão.

Não é por isso uma falta de interesse, ou de análise, mas precisamente uma análise alinhada com os interesses da pequena-burguesia que o PCP tão nomeia como aliados - um partido que defende uma classe cuja existência requer a manutenção da exploração, irá, invariavelmente, reproduzir a ideologia que sustenta essa produção.

Damos um exemplo a nós passado por uma militante da JCP em Leiria, que após confrontar um quadro sobre a falta de propostas quanto a estas lutas, ou tanto se posicionarem, claramente, a seu favor, lhe ter sido respondido que esperasse dois dias por uma publicação.

E como podemos ver, o seu conteúdo é em parte insuficiente, e em parte oportunista. Cai no desvio que infiltra toda a propaganda e agitação do PCP/JCP, o economicismo - a redução das pautas dos explorados à melhora da sua vida económica, sem nunca procurar ou investigar as pautas políticas - uma crítica a ser alargada futuramente em outros artigos. Com isto reduz toda a luta concreta das pessoas LGBT às lutas económicas da classe trabalhadora em geral. Chamam a isto construir a unidade, mas para além do economicismo ser precisamente incapaz de a construir, basta questionarmo-nos: Uma organização que se coloca constantemente ao lado dos opressores que a integra, contra os oprimidos que silencia, constrói que unidade? Precisamente, a unidade do oportunismo contra o comunismo.

Mas aos olhos dos seus militantes mais fieis, e a esmagadora maioria dos quadros e dirigentes, o PCP/JCP é incapaz de se alinhar contra os interesses da revolução. Afinal, apresentou reformas, aprovadas na Assembleia da República, melhorando a oferta de cuidados médicos a pessoas trans! Sendo assim, a transfobia dos seus quadros é sustentável (e tolerável) - contam apenas as reformas aprovadas, e nunca o abuso sofrido e perpetuado pela própria organização.

Este tipo de justificativa reformista face ao externo, para além das burocráticas face ao interno - manobradas na impossibilidade de negar os abusos cometidos pelos seus militantes (e na linha economicista), são acionadas sempre que se mostra necessário evitar um debate mais aprofundado.

Mesmo as reformas que o PCP/JCP leva à Assembleia, são de um constante paternalismo. Insistem, constantemente, que o cuidado médico a pessoas trans deve estar dependente de aprovação por parte de um psiquiatra ou psicólogo - não conseguem conceber um cuidado fora da tutelagem da burocracia, sujeitando pessoas oprimidas à sua violência igualmente recorrente e sistematizada.

Várias destas situações foram presenciadas pela nossa militância, e que precisamente nos clarificou a necessidade de nos organizarmos independentemente das estruturas partidárias. Negações, desculpas insustentáveis, antagonismos, abafamentos, expulsões.

E isto é apenas um exemplo ameno das consequências deste tipo de debate internamente porque mesmo quando não há expulsões diretas, as consequências conseguem ser igualmente devastadoras para as relações sociais de militantes que o façam. São mais frequentes o uso de afastamentos e convites para sair do partido.

Os afastamentos consistem, na grande parte dos casos, no corte de comunicações por parte do partido e no isolamento destes militantes das ações e reuniões.
Nos outros casos, temos os convites a sair, que passam por implicar geralmente diversas táticas de afastamento e humilhação de forma a forçar estes militantes a sair mesmo do partido, evitando o uso de processos de expulsão.

Os militantes, ou por crença acrítica na linha político-ideológica ou por ambição de ascender nas carreiras partidárias, defendem a todo o custo as decisões do PCP neste âmbito. Aliás, Mara Raposo escreve sobre isto na tribuna pública "Em que é que acreditas, Comité Central?", publicada no site do Coletivo Ruptura:

"Existe um estranho fenómeno, do qual nascem muitas das absurdas defesas do partido [...] em que há uma quase veneração do partido por parte dos militantes [...] O partido comete um “erro”, seja banal ou grave, o militante encara-se com este, e para poder defender o partido, recua da sua posição até à do partido."⁶

Isto deve-se à forma como o debate é controlado internamente, como referido anteriormente, e que Mara explica em mais detalhe:

"Como pode ser, então, que alguém que tão fortemente enfrenta um rio, se possa ser deixado levar por um outro rio? [...] Reprimindo o debate a ambientes fechados, negando a possibilidade de debate externo, tribunas públicas, pois “estes assuntos tratam-se internamente”, limitando estes próprios debates internos com regras preexistentes, e o obrigatório recurso a “textos importantes” pré-definidos."⁶

Isto tem uma agravante com o facto de o PCP não ter quaisquer filtros na adesão de novos militantes, ao ponto de termos casos de pessoas transfóbicas e outras com histórico de assédio a serem aceites abertamente dentro das bases. Um caso mais recente e caricato é o caso da Nádia Nunes, criadora de conteúdo de esquerda que, tanto no passado como mais recentemente, fez vários posts transfóbicos sem qualquer tipo de repercussão dentro do mesmo.

Além de não existir algum tipo de filtro na hora de aderirem novos militantes e de não se fazer nada enquanto às publicações transfóbicas que estes militantes publicam, os quadros do partido também optam pelo papel de exigir o silenciamento dos camaradas que criticam o partido nestas questões que, fartos desta situação, se atrevem a denunciar-lhe nas suas redes sociais privadas, deixando assim claro que o partido só tem interesse em controlar e abafar todas as publicações que criticam o mesmo. Sendo exemplo disto quando numa publicação do mês do orgulho de 2024, onde a JCP foi criticada pela sua posição oportunista, esta mesma foi apagada sendo depois publicada novamente sem a possibilidade de fazer comentários na mesma.

Mas o partido sustenta as suas estruturas nesta falta de critérios de adesão. A sua linha política, oportunista e revisionista, mantém-se intacta enquanto houver um fluxo de militantes sem formação teórica, ou que no geral aceitam acriticamente a mesma.

Isto tudo para proteger a sua posição institucional na democracia burguesa, onde também adotam o social-chauvinismo, protegendo um dos principais pilares do capitalismo – a família – através também da falta de posição definida, aberta, consciente e consequente nas questões queer.

Este tipo de ações só tem um objetivo, o qual é sempre resguardar o seu posicionamento institucional na democracia burguesa, ocultando constantemente qualquer crítica aos principais pilares deste sistema. Para este caso particular, referimo-nos concretamente à instituição da família burguesa. Nunca na sua história recente o PCP refletiu sobre ou debateu este tema, seja de que forma for, para o criticar ou mencionar que a abolição da família é em si um princípio marxista. Consequentemente, face às constantes opressões contra pessoas queer, o partido ignora completamente este fator estruturante (e extremamente danoso para as vítimas).

Como devem então os comunistas abordar a questão queer de forma a quebrar com as manhas revisionistas e oportunistas dentro do movimento? Alguns pontos surgem que são necessários neste âmbito:

  • Desenvolvimento de ambientes de interação social e mobilização política que deem prioridade às questões queer como uma das principais alavancas na luta contra a situação atual;
  • Formação teórica e estudo coletivo sobre as questões queer de um ponto de vista marxista - a forma como a opressão das pessoas queer está relacionada com o capitalismo e como a combater;
  • A defesa da abolição de género e da família como ponto central do programa comunista, mantendo sempre o contacto com estas camadas oprimidas da classe trabalhadora, e posicionando-se pela sua libertação.

Neste momento de reconstrução do partido comunista em Portugal, para além disto é necessário confrontar o problema publicamente. A discussão não pode ficar nas celas que os funcionários e quadros adoram usar para silenciar o debate. Ela tem que sair dessas correntes para outros lugares mais férteis.

Terminamos então com um apelo, aos camaradas militantes e ex-militantes do PCP/JCP, que tenham passado por situações similares às partilhadas neste texto, para que não hesitem em nos contactar com as vossas experiências.


Referências

1 António Santos, G: género
2 Joana Tomé, Para lá do arco-íris – a Luta é dos trabalhadores
3 Tweet de Miguel Tiago
4 Milene Vale, Constantinopla, 1453
5 félix, Apontamentos sobre a transfobia no PCP - Medium
6 Mara Raposo, Tribuna – Em que é que acreditas, Comité Central?

Créditos grafismo - "Early Morning of the Great March (Washington DC, Oct. 11, 1987)" Sandow Birk

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